carta #8: masculinidade, conservadorismo e gênero através de três filmes.
três filmes sobre a masculinidade, padrões e desconstruções de gênero e sobre como o conservadorismo impacta nessas questões.
uberlândia, 29 de dezembro de 2022.
olá,
para terminar o ano, te escrevo sobre mais três filmes incríveis que marcaram o meu ano. semana passada comentei sobre filmes & silêncio. na carta de hoje, compartilho filmes sobre a masculinidade, padrões e desconstruções de gênero e sobre como o conservadorismo impacta nessas questões.
bom trabalho (1999) — claire denis
começo com a claire denis, minha diretora viva favorita. seus filmes são profundamente carregados pela imagem, pelos não-ditos e pelas consequências do colonialismo nas relações humanas. em algum momento te enviarei uma carta mais detalhada sobre o trabalho dela, mas hoje quero te apresentar brevemente a obra bom trabalho.
o filme trata da história de um grupo de militares franceses vivendo na áfrica. na forma de flashbacks, conhecemos o declínio profissional de um de seus líderes.
acompanhamos os treinamentos e ações militares desse grupo. treinamentos estes que mais parecem peças de dança do que qualquer outra coisa. é lindo! carregadas de masculinidade, nos apresentam um limiar quase que subconsciente entre o desejo sexual e a repetição performática da masculinidade como forma de ocultá-lo. tudo isso através de uma coreografia e trilha sonora extremamente sensível.
assim que um novo soldado se une ao grupo, sua beleza chama a atenção de alguns e a partir disso começam a surgir alguns conflitos. os desejos reprimidos se expressam através da violência; o desejo pelo corpo é substituído pelo consumo do corpo exaustivamente por meio dos exercícios militares; a inveja do outro oculta a vontade de dizer “te quero”.
essa tensão sexual se intensifica ao longo da obra. é um estudo lindíssimo sobre como construímos diversas barreiras para cercear os nossos desejos.
e do meu lado, esse foi o meu ano de buscar entender e conhecer os meus desejos reprimidos. de início, foi tudo muito aterrorizador, tudo muito distante. muitas vezes nos jogamos a essas danças culturais e repetitivas e esquecemos de dar um passo ao lado e nos observar, de entender qual é a dança que queremos para nós.
os soldados pareciam se jogar no militarismo e na masculinidade como uma forma sedenta se calar seus desejos. já sobre mim, não sei bem o que tenho dançado, tampouco o que tenho reprimido. é isso que busco entender.
quanto dos seus desejos ainda estão enterrados no seu subconsciente? você já parou para pensar um pouco sobre como tenta escondê-los?
noite incerta (2021) — payal lapadia
após o ensaio sobre masculinidade & militarismo da claire denis, temos um ensaio sobre governos ultraconservadores da payal lapadia. noite incerta (a night of knowing nothing) conta a história de:
Uma universitária indiana [que] escreve cartas para o namorado depois de terem sido separados. Por meio das cartas, temos uma ideia das mudanças drásticas que acontecem ao seu redor. Combinando realidade com ficção, sonhos, memórias, fantasias e ansiedades, uma narrativa amorfa se desenrola.
acompanhamos a desilusão amorosa através das cartas escritas por uma jovem estudante. em paralelo, assistimos à luta dos estudantes contra o sistema de castas indiano. vemos de perto as reuniões estudantis, os protestos e greves. também assistimos aos resultados imediatos dessas lutas: repressão policial, perseguição judicial e punições na faculdade. um retrato incrível sobre as lutas indianas, que muito diz sobre o brasil atual.
no aspecto individual, o filme retrata também a hipocrisia e fraqueza dos personagens frente aos conflitos sociais. descobrimos que o relacionamento retratado pelas cartas terminou porque o rapaz não teve coragem de assumir para a família que namorava alguém de uma casta inferior. curiosamente, ele era militante ativo na faculdade contra o sistema de castas, era reconhecido por isso. ele, incapaz de se rebelar contra a própria família, preferiu romper seu relacionamento e fugir. sua figura pública como militante aparece como uma farsa (ou até mesmo uma fraqueza) contra o sistema e a cultura.
tudo isso me fez perguntar: até onde conseguimos levar os nossos ideais? certas escolhas trazem determinadas consequências. o quanto da nossa liberdade é cerceado pelo medo do que esta por vir a cada passo fora da norma?
escrevo enquanto penso sobre meus passos e suas possíveis consequências. sendo a liberdade uma luta constante, ela é também um medo constante. medo, pois, para Eles, tudo que foge ao normal deve ser eliminado.
freak orlando (1981) — ulrike ottinger
e sobre fugir das normas, termino com freak orlando, algo que não faço ideia de como descrever. é experimental, excêntrico e incrível.
Neste “pequeno teatro do mundo”, dividido em cinco episódios, Orlando, homem e mulher, percorre a história da humanidade desde seus primórdios até os dias de hoje, incluindo os erros, a incompetência, a sede de poder, o medo, a loucura, a crueldade e o lugar-comum. Cenas de um inferno mitológico, a Inquisição Espanhola, na Idade Média, e outras etapas da civilização são exploradas durante sua trajetória. Baseado em Orlando: Uma biografia, de Virginia Woolf. O mesmo conjunto de atores desempenha papéis diferentes em cada um dos cinco segmentos cronológicos.
li orlando: uma biografia no começo deste ano. também assisti à adaptação de sally potter, de 1992. os três, em conjunto, fazem uma bela biografia sobre as diferenças das performances de gênero ao longo dos séculos. mas é em freak orlando onde vemos um dos significados do queer, do mundo estranho, experimental, e livre de viver como quem você é.
estranheza… estranho… estrangeiro.
Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! […] Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo. Mas juro que isso é a respiração. […]
Embaixo da mesa, estremece o pinto de hoje. O amarelo é o mesmo, o bico é o mesmo. Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava.
a legião estrangeira, clarice lispector
espero que goste dos filmes de hoje.
até breve,
eu.
Estou adorando as recomendações Aron!!