ubirajara, 20 de dezembro de 2022.
oiê, como vai?
o final de ano é um período cheio de listas, retrospectivas, reflexões. também resolvi fazer as minhas listas.
durante esse ano muitos filmes me marcaram. imagino que algo parecido possa ter acontecido com você também. por isso escolhi cinco filmes que me tocaram bastante em 2022 e gostaria de deixar alguns comentários sobre eles.
para não deixa a carta tão longa, resolvi dividir em duas partes. na primeira carta comento sobre dois filmes que se comunicam através dos diversos significados do silêncio: medos, traumas, amores, desejos, angústias.
na praia à noite sozinha (2017) — hong sang-soo
hong song-soo está entre os meus diretores vivos favoritos. seus filmes falam muito sobre o silêncio e de como isso impacta nas relações amorosas, familiares e nas amizades. silêncio esse que muitas vezes esconde uma tempestade de pensamentos, traumas e conflitos internalizados.
com movimentos de câmera sutis e zooms prolongados nas expressões das personagens, o limiar entre o silêncio externo e o turbilhão interno parece estar sempre prestes a se romper. o trabalho, o cotidiano, a vida corriqueira faz de tudo para calarmos esse barulho interno. em uma vida repleta de afazeres e distrações, mostramos ao outro e a nós mesmos uma calmaria externa que frequentemente não existe.
na praia à noite sozinha é um pouco sobre isso. é o meu filme favorito do diretor. é também um dos mais autobiográficos. conta a história de uma famosa atriz (interpretada por kim min-hee) que, após ter se relacionado com um diretor casado, tem sua vida e figura pública destruída pela mídia coreana (algo que realmente aconteceu entre hong song-soo e kim min-hee). ela então foge do seu meio artístico e de si mesma, se isola numa busca pela tranquilidade. todo esse trauma e essa paixão mal resolvida se torna um silêncio ensurdecedor. a solidão aparece como uma falta. sua calmaria é como uma bomba prestes a explodir. é a isso que assistimos.
o que mais marcou nesse filme foi um pequeno detalhe que aparece ao longo da obra: uma sombra, um vulto, um homem. a personagem parece estar sempre sendo perseguida por essa imagem. há algo de pesado e sombrio nesse masculino que a persegue. um passado que ela não consegue deixar para trás, algo que parece estar sempre pronto para violar o seu espaço, uma cultura que nas repetições frenéticas de certos movimentos tenta apagar as diferenças.
essa imagem ficou na minha cabeça por muito tempo. algo muito semelhante aparece em meus sonhos desde o ano passado. também tenho medo, também tento correr, também tenho curiosidade sobre o que é aquilo. é ele que me impede de ficar na praia à noite sozinha, pois tenho medo. mas é ele também quem me joga nos seus ombros e me arrasta até lá.
como nos livrar dessas sombras do passado, da cultura e do olhar do outro que nos impedem de viver livremente?
a ilha do milharal (2014) — george ovashvili
um filme sobre os ciclos da vida. começos, crescimentos, colheitas, tempestades e recomeços.
ano após ano, um senhor se muda para pequenas ilhas temporárias que surgem no meio dos rios para plantar milho. é uma tradição local e um modo de vida, são as estações do ano que mantêm esse fluxo de camponeses de acordo com os fluxos dos rios. o filme retrata mais um desses ciclos.
desta vez ele está acompanhado por sua neta que acabou de perder os pais. vemos como o silêncio atua em nossas vidas e de como ele pode muitas vezes dizer tanto. há uma relação de amor e carinho muito grande entre avó e neta, entre o senhor e sua terra. os diálogos são substituídos por olhares, sorrisos, movimentos, toques (logo nas primeiras cenas, vemos o senhor beijando a sua ilha, sua nova morada).
há também uma distância enorme entre eles: de geração, de experiência, de vida. é o isolamento e o trabalho árduo que aparece como uma oportunidade de criar algo antes não construído entre os dois.
com o crescimento do milharal, também acompanhamos o crescimento da neta. uma jovem adolescente ainda em luto, que começa a se tornar adulta. após algumas semanas, a sua boneca de pano, objeto de amor e brincadeiras, se torna uma memória. deixa de viver nos braços da menina para ser pendurada na parede do quarto da jovem moça, como um enfeite-lembrança de um passado já vivido. é um símbolo de seu crescimento.
ao redor da ilha ouvimos tiros, vemos militares. há uma guerra em curso — sempre há. é a guerra que quebra o silêncio dos dois e também o que os cala. o mesmo acontece com todos nós. é a violência que cerca o que chamamos de lar e que nos ilha do mundo, que nos afasta do Outro. que nos faz comprar muros e paredes para termos uma ilha só nossa. não mais como resultado de uma tradição local, como no início do filme, mas agora como uma forma de defesa primitiva. é o medo que reina, não mais o amor pelo solo.
além dessa relação entre o medo criado e gerenciado pela sociedade para nos controlar, esse filme me fez pensar muito sobre meus pais. eles moram em um sítio e passaram a vida toda trabalhando sem descanso, seguindo as estações do ano. a cada estação, algo novo a ser feito, para então ser colhido, desfeito, recomeçado. assim como aquela sociedade do filme, meus pais também parecem estarem presos ao fluxo desse rio que os deixa isolados em uma ilha cada vez menor, com um exterior cada vez mais violento para eles.
também sou extremamente distante dos meus pais. é uma relação fria e de poucas palavras. sempre foi assim. e tenho medo, pois há outro ciclo que se aproxima do fim, e talvez na próxima estação do ano a ilha que eles construíram para mim pode já não mais estar aqui, já pode ter sido levada pelo rio da vida. o medo vem da incerteza de como eles vão reagir com essa mudança, com a quebra do ciclo.
quando a repetição de um ciclo se torna uma prisão? quanto depositamos de expectativa na vida do outro? de onde vem o medo da mudança?
esses dois filmes me marcaram muito. caso você ainda não conheça, fica a dica :)
na próxima carta, te conto como outros três filmes me marcaram nesse ano (bom trabalho, noite incerta e freak orlando).
quais foram os filmes que te tocaram esse ano e como?
até a próxima,
eu.