carta #5: solidão e o medo de ser H.
enquanto desejo desnudar-me frente ao mundo pela primeira vez, vejo o quanto me escondi ao longo da minha vida. talvez por isso eu esteja só. e carregue tanto medo de ser H.
uberlândia, 21 de outubro de 2022.
após algumas semanas trabalhando muito para não pensar na vida, como te contei na última carta, cheguei a um estado reflexivo que me fez querer parar um pouco e tentar entender onde estou. e sinto que, mais do que nunca, vislumbro os meus desejos ao alcance das minhas mãos.
começo a traçar o delineado do amanhã. a queda do abismo já não me assusta mais. uma das pernas já deixou o chão. o corpo se inclina. meus olhos já começam a se fechar. o vento vermelho do abismo suspira em meus ouvidos. pressinto um corpo que cai. já posso ouvir o estraçalhar dessa queda.
há um ato de violência: a destituição do Eu.
e uma cena erótica: o desnudar-me frente ao mundo, pela primeira vez.
ainda não te escrevo para falar sobre o salto em si. darei um passo atrás para te falar sobre um dos motivos que me levaram até a beira do abismo. enquanto desejo desnudar-me frente ao mundo pela primeira vez, vejo o quanto me escondi e me protegi de cada olhar, cada contato, de cada pessoa ao longo da minha vida.
talvez por isso eu esteja só. e carregue tanto medo de ser Homem.
estou em um período de pouquíssimas amizades e preso em uma certa contradição: uma busca por novos contatos — algo que raramente acontece — e, ao mesmo tempo, um afastamento de quem eu já conheço. há algumas semanas uma cena em um sonho representou um pouco desse sentimento:
brinco com um amigo num chão de terra, corremos e nos divertimos muito. então ele começa a me falar sobre freud e suas explicações para os processos de subjetivação, sexualidade, transexualidade, formação de identidade, e assim por diante. enquanto ele me conta tudo aquilo, começo a cavar um buraco freneticamente com as minhas mãos. ouço-o com desdém, sei que fala tudo da boca para fora, que sabe muito pouco daquele assunto, que só quer aparecer. continuo cavando até que consigo colocar meu corpo todo no buraco. estou só com a cabeça para fora. já não presto mais atenção naquele falatório vazio. me preencho com um estado de paz.
[sonho do dia 26/07/2022]
até hoje não sei bem que buraco é esse. se estou num processo de me esconder, entrar numa toca e me afastar de todos, ou se estou construindo um espaço para chamar de meu, um buraco que meu corpo possa viver. ou quem sabe ambos.
algo claro é que durante a minha vida toda tive uma série de dificuldades para me relacionar com as pessoas. e também diria que são vários os motivos. mas o elemento que me parece ser central e que me segura pelas costas desde a adolescência é o medo de ser um Homem, em qualquer das relações.
ao me relacionar com qualquer pessoa, individual ou coletivamente, fico o tempo todo em um estado de alerta absurdo, constantemente carregando o medo de acontecer qualquer coisa que me faça parecer com um “Homem”. em grupos masculinos, não quero ser mais um membro, faço de tudo para ser o mais invisível possível nesses espaços. algo parecido acontece com as minhas relações com as mulheres. carrego sempre um medo desproporcional de, a qualquer momento, encenar um comportamento que identifico como masculino e com isso arruinar tudo.
de modo que, em todas as relações, me torno uma pessoa fria e distante que evita todo e qualquer tipo de contato para que de forma alguma a dualidade Homem x Mulher transpareça. sei que é tudo coisa da minha cabeça. mas é algo que está constantemente comigo.
hoje sei que homem e mulher, masculino e feminino nada mais são que ficções, que, no fundo, tudo isso significa muito pouco. mas, embora tomar consciência disso tenha facilitado as minhas relações, ainda há uma questão maior em jogo, algo que não sei bem como resolver. ou melhor, ainda falta a coragem para me jogar nesse abismo.
e também, de pouco adianta ter essas ”desconstruções” na cabeça enquanto a sociedade espera algo diferente. de certa forma, foi essa inquietação que me levou a escrever a segunda carta sobre máscaras, as interfaces pelas quais as pessoas se comunicam, exprimem e recebem demandas, desejos e, principalmente, reconhecimento. carrego o medo de ser um Homem, mas é também através deste signo-máscara que sou lido, a partir do qual ocorre toda a dialética de demanda/reconhecimento. e já vivo com essa contradição de ser o que mais temo por uma vida.
você já sentiu estar vivendo e atuando através de uma contradição? tem algo de quem você é que te assusta, que te dê medo? acho que somos mais complicados do que parecemos, embora isso raramente transpareça.
sinto o corpo balançar
e deixo de resistir.
a queda se torna inevitável.
um sacrifício,
ritualístico.
doloroso.
volto a fechar os meus olhos.
respiro profundamente
e sinto a brisa vermelha do abismo.
ela me chama.
Por que se incomodar mudando seu estado mental [através do uso de drogas, telas, vícios, etc.] quando é possível mudar de status sexopolítico? Por que mudar de humor quando é possível mudar de identidade? Eis aqui a superioridade sexopolítica dos esteroides. Trata-se de saber se o que queremos é mudar o mundo para experimentá-lo com o mesmo sistema sensorial que temos, ou se é preciso mudar nosso corpo como filtro somático da percepção através do qual passa o mundo. O que é preferível: mudar de personalidade e guardar o meu corpo, ou mudar de corpo e conservar meu modo atual de experienciar a realidade? Falso dilema. Nossas personalidades surgem dessa defasagem entre corpo e realidade.
[testo junkie, paul b. preciado]
um beijo,
aron.
Me encontrei em muitas partes de seu texto. Obrigada por mostrar we não sou a única que tem inúmeras questões sobre o que somos, porque somos etc etc . Acho que esse fritar de ideias nos leva a caminhos até então não imaginados e a vida é bonita por isso....
Muito forte o que você escreveu, me identifiquei muito com a parte que você fala de ter dificuldade de se relacionar com outras pessoas, se ver sem amizades e buscando novos contatos 🥹 acredito que isso é uma habilidade que a gnt vai elaborando com o tempo, e achei legal como o seu sonho pode trazer várias interpretações. Vejo muito a importância de ter um lugar nosso antes de se envolver mais com outra pessoa, e isso já foi uma coisa que só aprendi nos últimos anos :~ talvez o buraco que você cavou não seja necessariamente se esconder, tanto que você conseguiu escrever sobre isso, mas encontrar formas de criar raízes, de se conectar mais com o que você pensa e sente ou até uma busca de relações mais profundas, enfim. fica bem, um beijo