carta #2: minhas máscaras já não me servem mais. mas não tenho o que colocar no lugar.
quantos Eus você carrega dentro de si? na carta de hoje, gostaria de falar um pouco sobre as nossas máscaras e o que elas tentam esconder, imitar ou, principalmente, comunicar.
uberlândia, 25 de agosto de 2022.
oie, como vai?
quantos Eus você carrega dentro de si? já percebeu que dependendo do contexto (lugar, situação, estado de espírito, …) e das forças envolvidas (desejo, imposição, costume, cultura, …) acabamos atuando através de um Eu completamente diferente dos demais? na carta de hoje, gostaria de falar um pouco sobre as nossas máscaras e o que elas tentam esconder, imitar ou, principalmente, comunicar.
na última carta falei um pouco sobre o que chamei de caixas-identidades e caixas-interesses, aquilo que carregamos como rótulos sobre quem somos e do que gostamos, de como gostaríamos de ser identificados e do que buscamos no outro. algo muito importante nesses processo de contato com o outro é a forma que se dá a comunicação, o link. por isso, pensei em continuar o assunto, mas a partir dessa nova perspectiva: das nossas máscaras.
e então me lembrei de um filme incrível que assisti há alguns meses, chamado o funeral das rosas. este é um filme da nouvelle vague japonesa de 1969, onde nos é apresentada a noite lgbt de tóquio. misturando características de um documentário com uma obra ficcional, com diversas referências à cultura pop americana e com uma fotografia p&b incrível, é um dos meus filmes favoritos dentre os que assisti nesse ano. há um trecho dele que me tocou bastante e que carrego comigo desde então:
Cada pessoa tem sua própria máscara… a qual esculpiu durante muito tempo. Alguns carregam a mesma máscara por toda a vida, mas… outros usam toda uma variedade de máscaras. Algumas máscaras reforçam as características, mas… outras estão bem longe do original. Algumas são pobres e facilmente reconhecíveis, mas… outras são tão habilmente talhadas, que serão dificilmente reconhecidas.
As pessoas sempre usam máscaras ao enfrentar as demais. Apenas veem máscaras. Mesmo que as retirem… raras vezes suas faces se expõem, pois pode haver uma segunda camada de máscaras. E outras camadas… ocultas atrás das primeiras.
muitos apresentam as questões das máscaras como algo ruim, como um filtro que esconde a natureza-essência de cada ser ou como algo fabricado para enganar ao outro. mas aqui prefiro apresentar como algo inerente a cada um de nós, algo que exprime a forma pela qual nos relacionamos e com o outro.
nossas máscaras nada mais são do que complexas interfaces ou protocolos pelos quais é possível criar links e nos comunicar com os outros, com o mundo e com nós mesmos.
como disse na primeira carta, recentemente comecei a abrir a minha caixa de pandora-aron e uma série de mudanças começaram a fluir por aqui. estou em um momento de abandonar todos os meus rótulos-caixas e tentar construir um novo Eu.
ao ver certas mudanças se iniciando em minha vida, desesperadamente comecei a buscar rótulos e a traçar um futuro para tudo isso. passei meses agarrado a um presente que não se cansava de ser atropelado pelo amanha. queria um novo lugar para chamar de meu, uma nova release, modelo 2023. uma tentativa frustrada de rotular uma série de fluxos e movimentos cujo devir nada mais é que um constante indeterminação e contradição.
tudo isso significa que parte das minhas máscaras, as formas pelas quais eu me comunico com os outros, já não me servem mais. mas ainda não tenho o que colocar no lugar.
é esse vazio-identitário-existencial que me assombrou por vários meses e que só recentemente se transformou em um devir. antes, procurava por novas máscaras-e-rótulos, lutava por um destino. recentemente, troquei tudo isso por um caminhar-sem-rumo, deixei-me tomar por algo próximo de um presente absoluto como apresentado pelo safatle n’o circuito dos afetos:
Presente absoluto é a expressão da temporalidade concreta, expressão de como “o presente concreto é resultado do passado e está prenhe de futuro” [aqui ele cita hegel], temporalidade que é a produção do processo concreto das coisas […] Não há nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se tornar possíveis, já que relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um mesmo processo.
hoje diria que, de certa forma, tais mudanças não mais me atropelam. tampouco tento contê-las ou guiá-las. o agir através de um presente absoluto foi o que me deu uma nova forma de me descobrir, onde “os impossíveis podem agora se tornar possíveis”.
diria que essa é a principal máscara que carrego comigo, aquela que simplesmente borra-e-desmancha todas as demais, que tem como única indicação a de não representar nada. essa é a sua beleza e a sua grandiosidade. e também o seu peso. um nada que carrega a possibilidade de tudo dentro de si. uma negação determinada de quem eu sou.
O movimento que a negação determinada produz é um movimento de mutação para a frente, mas também para trás.
de forma que, continuo carregando todas as máscaras anteriores, expandindo-e-transformando para trás. externamente, posso até parecer ser a mesma pessoa que era há um ano. entretanto, também vislumbro novos horizontes, em um presente que está prenhe do futuro, expandindo-e-transformando-para-frente.
a sociedade clama por rótulos. você também. eu também. hoje sei que os conteúdos de tais rótulos não passam de mera ficção, de atos performáticos repetidos e forçados indefinidas vezes até que apareçam como uma verdade. o meu presente absoluto nada mais é que encarnar essa contradição-ficção anunciada. essa é a minha máscara. assim que atuo.
é através dessas máscaras, dentre várias outras coisas, que ocorre toda uma dinâmica-dialética de reconhecimento. um olhar meu que encontra o seu; que, ao me ler através de minhas máscaras-ficções, reage e me retorna uma demanda condicionada em como se deu essa interpretação.
o problema é que, como já disse, minhas máscaras já não me servem mais. você já passou por algo parecido em sua vida? já viu aquela pessoa que você chamou de Eu se desmanchar dentre os seus dedos sem saber como reagir?
em momentos de tempestade, parecemos estar offline. o link morre. e não sabemos lidar com o vazio. a angústia nos faz tremer.
embora eu carregue essa grande energia potencial que a indeterminação como devir, ou o presente absoluto, me forneça, ainda não aprendi a como aplicar uma força de transformação que desencadeie toda essa potência. uma bomba-práxis-contida.
mas vivemos em uma sociedade das releases constantes e o inverno está prestes a acabar. logo teremos a primavera. momento de florir. um vento carregado de cheiros, cores, sabores e afetos. um período de respiro, onde nossas ruas-cidades-vidas tão cinzas vislumbram novas cores. sorrisos. reencontros. explosões-e-implosões.
o que a sua primavera promete? por aqui, acho que tem muita coisa a caminho.
no aguardo pela sua resposta, seja carta-digital ou carta-física.
um beijo,
aron.
ps: relendo a carta, fiquei com vontade de explorar sobre as “raras vezes suas faces se expõem” sem máscaras, ou seja, o erotismo. podemos falar sobre isso no futuro.