carta #4: tenho trabalhado para não chorar.
há sentimento estranho que me define nos últimos dias: a vontade de chorar. além disso, percebo como tenho trabalhado demais. e de como isso tem sido ótimo para evitar que eu pense sobre a vida.
uberlândia, 15 de setembro de 2022
olá, a carta de hoje é sobre um sentimento estranho que me define nos últimos dias: a vontade de chorar. carrego comigo um peso na garganta e um olhar cansado, vejo diariamente meus lábios se arriscando no limiar entre o sorrir e o chorar. sinto que a qualquer momento irei desabar. ainda não sei quando essa queda me abençoará, muito menos como me jogar nesse abismo. mas os ventos anunciam que a tempestade já está chegando.
há cerca de duas semanas, na noite que antecede minha análise, tive um sonho que resume um pouco a carta de hoje e sobre o que gostaria de falar com você. segue um resumo do sonho:
estou em uma sala comercial bem ampla. as paredes laterais são todas de vidro, a claridade do exterior percorre todo o ambiente. estou sentado em uma poltrona bem confortável e espero minha analista chegar. um ônibus para na lateral do prédio. uma pequena janela deste andar se abre, por onde entra minha analista se contorcendo e espremendo toda. ela vem caminhando e sorrindo para o centro da sala para mais uma sessão.
tudo ocorre normalmente. a sessão termina com um sentimento muito profundo de intimidade, uma proximidade que não existia antes. algo ali nos aproximou, embora eu não saiba o que tenha sido. ela se levanta e caminha na direção oposta pela qual entrou no prédio. fez uma travessia: entrou pela esquerda, conversamos no centro, agora parte pela direita. no canto da sala, ela abre uma nova janela e volta a se contorcer para entrar em um ônibus que a esperava.
saio desta sessão com uma vontade enorme de chorar. estou carregando algo muito pesado na garganta. quero voltar andando para casa, mesmo que isso leve muitas horas de caminhada sob o sol. preciso deixar esse choro sair.
sento em uma mesa para descansar um pouco. mas, logo que me sento, chega um colega de trabalho com seu notebook e começa a me falar sobre trabalho, sobre estar precisando da minha ajuda.
ele fala sem parar.
e eu só quero chorar.
o trabalho está me chamando, mas o choro também…
ou sou eu que chamo o trabalho para não ter que chorar?
acordo desse sonho lentamente. levo alguns minutos para perceber o que aconteceu. estou encolhido na cama e a vontade de chorar me deixa desorientado.
infelizmente, não chorei. levantei e fui ao meu notebook. rsrs. nele transcrevi o sonho e depois esperei até o dia amanhecer para ir para a minha análise, na esperança de que lá o meu choro pudesse sair. lá percebo como tenho trabalhado demais. e de como isso tem sido ótimo para evitar que eu pense sobre a vida.
trabalho, faço faxinas, corro, me esgoto em todos os lugares possíveis. tudo isso para esquecer o que vem me assombrar nos sonhos, tanto os oníricos quanto os oriundos dos meus desejos. talvez eu seja covarde demais para assumi-los e trabalhar me ajude a escondê-los.
você também se agarra ao trabalho em momentos assim? o que você teme? do que está fugindo? tenho refletido bastante sobre isso ultimamente.
hoje faz duas semanas que esse sonho me abalou, mas o choro ainda está preso na garganta. isso não significa que eu esteja deprimido, melancólico, ou algo do tipo. bem pelo contrário, tudo vai muito bem ao mesmo tempo que o choro bate na porta. isso é o que mais me deixa confuso. não sei o que está acontecendo.
e também me parece bem curioso, pois sou uma pessoa bem chorona, sempre fui assim. filmes, músicas, leituras, histórias. tudo isso me faz chorar com uma enorme facilidade. antes de sentar para te escrever essa carta, chorei ouvindo essa música:
mas infelizmente não libertou o que está preso por aqui. acho que foi um choro para um Outro, não um choro para mim. parece que só aprendi a chorar através de estímulos externos. há alguns meses ouvi algo do tipo na análise: “você tem um corpo muito sensível. por onde passa, entende e se comunica com tudo e com todos ao seu redor. mas parece que você não entende essa linguagem do seu corpo, as suas intuições, os seus sentidos. não entende e, de certa forma, silencia.”
esse comentário ainda me assusta. eu realmente não conheço a linguagem desse corpo. sinto que te escrever tem me ajudado a aprender esse vocabulário, essa língua dos meus sentidos. assim como a dança contemporânea tem me ajudado a quebrar várias das correntes que me prendem a quem eu sou. mas ainda há uma resistência muito grande por aqui. uma (língua) estrangeira tem tentado falar comigo, mas raramente a entendo, talvez por isso eu ainda não saiba do que preciso para deixar essa tempestade cair, para que este rio de lágrimas saia das profundezas e possa fluir.
sabe quando você está numa montanha-russa e o carrinho chega no ponto mais alto, para por um segundo, você prende sua respiração e, num instante, parte rumo a queda livre? estou vivendo esse limiar em relação a várias coisas. há um sorriso que a qualquer momento pode ser tornar um choro. um medo de ser olhado de forma diferente que é também o que eu mais desejo. um Eu que já não tem mais as suas máscaras, mas que também busca por novas.
mas enquanto o choro não vem, sigo minha vida como antes. tentando trabalhar menos e dar mais valor ao que importa, na esperança de estabelecer contato com essa (língua) estrangeira. talvez assim, gradualmente, eu aprenda um pouco da sua linguagem e consiga te dar um oi. estrangeira, se me escuta enquanto escrevo isso, se importaria de aparecer em meus sonhos essa noite? tem algo que gostaria de te contar.
um abraço-apertado,
aron.
Que carta linda!