carta #9: sobre uma escrita covarde
"Há como a escrita ser covarde? Escrevendo não sobre o que realmente se inquieta, mas pelas beiradas, pelo supérfluo, pelo que é indiferente? Se for possível, essa escrita é necessária?"
uberlândia, 17 de janeiro 2023.
olá,
desde que voltamos a trocar cartas, e até mesmo antes de eu começar a falar contigo, a principal questão que pairava na minha cabeça era: qual será o nível de sinceridade destas palavras? são várias as coisas que tenho para te contar e que não sei por onde começar.
a cada carta que vou te escrever, entro em uma dança. ora mostro algo, ora escondo tudo. ora ora. meu corpo se aproxima e se mistura com as palavras jogadas nessa brincadeira de construir-texto para desconstruir-narrativa; de romper os limites do possível para que novas ficções possam governar; de desafiar as normas para que a poesia possa florescer; de entender que não há onde começa um e termina o outro. a dança é uma só.
hoje queria conversar um pouco sobre isso. pensar que tipo de escrita é essa que precisa tanto das sombras e das metáforas para dar terreno e substrato ao novo. e sobre como eu amo minha escrita covarde.
começo com um breve contexto da questão. em 2019 faço meu primeiro curso de escrita de contos. foi minha primeira vez tentando navegar por esse mundo. no final do curso estava escrevendo o que seria o meu primeiro conto: a história de uma pessoa que acabara de se mudar para sp em busca de uma nova vida. sua chegada em sp não foi nada fácil, e justamente o que queria comunicar era esse choque de como as coisas poderiam ser tão difíceis para algumas pessoas. a escrita era toda em segunda pessoa. algo meio incomum para contos, mas que facilitava um dos principais objetivos do texto: esconder as identidades por trás da personagem-narrativa, que só se revelaria no final da história, como uma chave que explicaria em parte os acontecimentos narrados.
a forma do texto foi inspirada no conto no seu pescoço, da chimamanda ngozi adichie. um dos meus contos favoritos. na época, pensava muito se iria colocar meu texto em algum blog ou não. por um lado eu gostaria de dar vida ao que fiz, mas, por outro lado, não queria ligar quem eu era com o que eu havia escrito. o plano se tornou usar os corriqueiros pseudônimos. seria um texto de lydia bordin, não aron. eu não tinha a coragem de carregar aquilo comigo. resumindo uma outra longa história: até o dia do meu nascimento, meus pais acreditavam que eu seria uma menina, era isso que diziam os exames. este seria o meu nome.
mas enfim, acabei deixando o texto de lado. nunca foi postado e nas diversas mudanças de endereço-vida que tive desde então já nem sei o que aconteceu com os meus rascunhos-planos.
antes de começar a te escrever cartas, parei para pensar se invocaria um pseudônimo ou não. sabia que não queria linkar muito das coisas que estava planejando dizer com o aron. mas, ao mesmo tempo, não queria aparecer como uma pessoa desconhecida para você. cartas carregam intimidade. eu precisava de algum nível de sinceridade.
escolhi expor o nome real e, como alternativa, esconder as palavras reais.
muitas vezes paro para pensar e sei muito bem que não há nada de escondido faz tempo. esteve tudo sempre muito claro, tanto nas entrelinhas como em cada referência e parágrafo. foi onde comecei a questionar dos motivos de tanta resistência para a escrita, sobre o que me impede de falar sinceramente sobre mim.
pareço estar sempre fugindo. e é a fuga que me move. mas em direção a quê?
entendi um pouco sobre os motivos de tanta fuga em uma oficina organizada no ano passado pela Ana (
) e Fernanda (), chamada “cartas que nunca escrevi”. parte da oficina foi pensar justamente esse processo de certas coisas que queremos escrever, mas que ainda não temos a coragem para tal. são muitas as cartas que já te escrevi e joguei fora, desisti. são várias as guardadas esperando pelo momento certo. e, principalmente, são muitas as que ainda não tive a coragem de sentar e escrever. sei muito bem dos seus conteúdos, mas colocá-los em palavras é um processo ameaçador e doloroso. por isso espero. por isso falo tanto pelas beiradas.em dezembro, essa passagem do gastrophoda me fez querer escrever a carta de hoje:
Há como a escrita ser covarde? Escrevendo não sobre o que realmente se inquieta, mas pelas beiradas, pelo supérfluo, pelo que é indiferente? Se for possível, essa escrita é necessária?
[brayan arantes]
tudo é nada antes que possa ser algo. foi a covardia de escrever te escondendo (ou fingindo esconder) tudo que me permitiu te dar um oi. que ótimo que fui covarde o suficiente para tal. pois sei que, por mais que eu tenha lutado contra, há um fio que liga toda a minha comunicação. como na dialética do senhor e do escravo onde o escravo se liberta através do seu trabalho, trabalho este que materializa e externaliza a sua essência, mesmo que ela ainda não saiba que está o fazendo, foi através de meu medo de estar dizendo demais que consegui colocar tudo o que queria no papel. está tudo lá-e-aqui.
ainda escrevo pelas beiradas, enquanto caminho por uma corda bamba. sinto a brisa vermelha que balança o meu fino apoio. e a cada passo me sinto mais perto de ti.
nessa travessia, muita coisa já se alterou. algumas escritas doem. escrever é também sobre externalizar uma essência, muitas vezes estrangeira, é recorrer à linguagem para tentar desesperadamente agarrar dentre os dedos as mínimas fagulhas do que está em nosso inconsciente.
a cada palavra dita, sei das inúmeras ainda não-ditas e do imenso vocabulário inexistente entre nós. minhas cartas são as sobras. um leve resquício do que pude te contar.
sobre as cartas que nunca escrevi, é questão de tempo. assim que der, sento e te escrevo algo novo.
até a próxima,
eu.
Amo quando os encontros geram esses remelechos Aron, me acontece muito disso nos cursos que faço e tenho por mim que são os empurrões da vida pra gerar os movimentos. Quanto a escrever pelas beiradas, sou eu todinha, as beiradas dizem muito, elas abrem caminho....
adorei este trecho: "nessa travessia, muita coisa já se alterou. algumas escritas doem. escrever é também sobre externalizar uma essência, muitas vezes estrangeira, é recorrer à linguagem para tentar desesperadamente agarrar dentre os dedos as mínimas fagulhas do que está em nosso inconsciente."
essa ideia da escrita não ser somente nossa essência, pura, mas também estrangeira, ou seja, de um outro. muito bonito.