carta #6: sobre viagens e devaneios
sair de casa é sempre muito difícil. luto contra toda viagem. mas foram elas que me fizeram sair do lugar, que me empurraram rumo a um novo Eu. e dessa vez não foi diferente.
londres, 23 de novembro de 2022.
olá,
estou voltando de uma longa viagem. não sei muito bem o que acontece, mas sair de casa é sempre muito difícil. a dificuldade de deixar as pessoas-plantas-pet-casa-conforto para trás sempre me assusta. fico hesitante, me questionando se realmente deveria estar fazendo aquilo. torço para que um imprevisto me abata e que assim eu possa dizer: “ahh, desculpe, aconteceu X e Y e por isso vou ter que cancelar a viagem”. mas esse imprevisto nunca veio.
e há algo de interessante que aconteceu em todas as viagens deste ano: me fizeram sair do lugar, me empurraram rumo a um novo Eu.
há tempos estou em um limbo identitário, em uma grande incerteza sobre quem eu sou. e, frequentemente, pareço enroscar ou até mesmo regredir. entretanto, todas essas viagens foram fundamentais para eu começar novas etapas desse processo.
em março passei cerca de 10 dias em guadalajara, méxico. foi uma experiência incrível! foi lindo ver como as ruas da cidade estavam repletas de mensagens políticas, por todos os lugares. em alguns pontos, elas lutavam por espaço. denúncias. promessas. gritos de luta. foi essa a linguagem que fez o meu olho brilhar e o meu coração saltitar nos primeiros contatos. senti o calor das ruas-pessoas. calor é o sentimento de descreve essa viagem. praças repletas de pessoas e de vida, atividades recreativas em cada espaço, museus incríveis, protestos, culinária que faz falta.
mas sem dúvida a melhor memória que carrego de lá é sobre um pequeno restaurante-cooperativa gerido por um grupo queer-anarquista que me tocou de alguma forma que na época ainda nem entendia. era um espaço relativamente pequeno, mas com um grito queer-punk em cada parede, a cada zine, em cada conversa de corredor. na primeira vez que fui lá, saí do almoço meio atordoado. fui para o hotel, entrei debaixo do chuveiro e chorei. sem saber bem o motivo. mas chorei. bastante.
uma ou duas noites depois, acordo no meio da madrugada em estado de choque. sonho estar no divã em uma sessão com minha analista. durante toda a sessão olho para trás para vê-la enquanto conto as descobertas recentes sobre mim em estado de euforia. e então, ao acordar, digo para mim mesmo: “já sei tudo isso sobre mim, não preciso anotar” e volto a dormir. e assim me esqueci de todo o conteúdo conversado naquele mundo paralelo dos sonhos. em um momento de extrema incertezas sobre quem sou, como pude me sentir tão certo sobre algo?
alguns meses depois vou para whislter, no canadá. a viagem é horrível. uma cidade artificial com nada além de turistas. cidade fria, pessoas frias, ruas vazias. frio é o sentimento que descreve esta viagem. me sinto em um estúdio de cinema, tanto pela artificialidade do local, como por perceber estar atuando um papel que não é meu, fingindo ser alguém que a cada dia se afasta mais de quem quero ser.
mas, mesmo sendo uma viagem ruim, ela mexeu comigo. foi quando a desconexão sobre quem sou e quem quero ser começou a transparecer. a frieza e falsidade daquele espaço me fez querer buscar um local quente e genuíno aqui dentro.
hoje estou voltando para casa após 12 dias em londres. culturalmente falando, foi a experiência mais intensa que tive a oportunidade de viver. tive duas semanas de muito teatro, música, comidas, culturas, etc. tive a oportunidade de chorar e me emocionar diversas vezes. um concerto do vivaldi; uma peça de teatro sobre solidão e sobre conviver com todos os sabores de si; um festival de jazz; alguns quadros do monet/renoir; fotografias da tracey moffatt; uma sala cheia de surrealistas que tanto amo. um vídeo de ming wong sobre as cobranças culturais/sociais e a vontade de se tornar uma pessoa passável nas ruas, algo que agrade-ou-engane o olhar externo para evitar as violências cotidianas [parte da obra é a imagem que abre essa carta]. etc, etc, etc.
apresento aqui três viagens deste ano. a primeira foi marcada pelo calor das ruas e das pessoas, onde pude sentir o desconhecido e me apaixonar por ele.
a segunda pelo frio de estar só, da falsidade que transparece, das aparências que mentem sobre o interior. de onde surgiu o desejo de buscar aquele calor de antes em mim. de simplesmente ser.
qual o sentimento de agora?
te escrevo esta carta no aeroporto enquanto tento decidir o sabor do amanhã. comento sobre o calor e o frio das viagens passadas por conseguir olhar para trás e saber como aquelas experiências me afetaram.
a partir do presente, olho para o futuro e tento dizer o que quero para o meu amanhã. o sabor que londres me apresentou foi o de uma enorme variedade de possibilidades. diversas cores, temperos, tamanhos e cheiros. me faz refletir sobre a monotonia cinza-concreto que tomou conta dos meus últimos meses. sobre a fraqueza do meu Eu frente à rotina que me domestica.
há alguns meses, em uma sessão de análise, comentei que gostaria muito de ter a coragem de fazer tudo o que eu quero. que só me faltava a coragem. ela me pergunta o que seria esse “tudo”, qual seria o destino dos meus desejos. faço com que o silêncio ocupe a sala por vários segundos. e então, respiro profundamente e digo: “tudo”.
volto para casa. volto para a escrita. volto para a vida. volto para não voltar.
com o desejo de que amanhã o tudo possa tomar conta de mim. que esta seja a última viagem necessária para que eu encontre o que tenho buscado nos últimos meses. já tive viagens e devaneios suficientes, que londres me traga o sabor do concreto. quando olhar para trás, quero poder dizer que concretude é o sentimento que descreve esta viagem. sabor da vida material, onde os sonhos-devaneios-viagens possam ganhar corpo-vida para que eu encontre o que estive procurando por tanto tempo. que a encontre aqui, em mim.
olá, seja bem-vinda.
um beijo,
ex-eu.
Você voltou!! Estava com saudades de suas cartas!!