carta #3: livros como uma janela para a alma
acredito que meus livros dizem muito sobre quem sou e sobre meu ideal de Eu, pelo menos de suas aparências. por isso resolvi te escrever uma carta sobre nossas leituras.
uberlândia, 06 de setembro de 2022.
olá!
nessa semana, enquanto terminava uma leitura e começava outra, me peguei em um pensamento que está passando pela minha cabeça há algum tempo: a de considerar uma coleção de livros-ou-leituras como uma janela e um fundamento para a alma. acredito que meus livros dizem muito sobre quem sou e sobre meu ideal de Eu, pelo menos de suas aparências. por isso resolvi te escrever sobre. uma carta rápida sobre nossas leituras.
antes de falar mais sobre essa possível janela, quero compartilhar um segredo, um grande fetiche: tenho uma certa queda por um aglomerado de livros. seja em uma estante ou mesa de trabalho/estudo, jogados-e-perdidos pela casa, esparramados pelo chão — como são os meus — ou de qualquer outra forma. há algo que faz sempre os meus olhos brilharem.
talvez isso explique a minha paixão por sebos. esses dias reencontrei um amigo que não via há anos e ele comentou a memória mais antiga que tem sobre mim: eu perguntando quais eram os melhores sebos de floripa, para onde havia me mudado na época. ainda nem éramos amigos e como ele não é muito de leitura não soube me ajudar. mas sempre que viajo para uma cidade nova, esses são os meus museus, os meus itinerários, os meus pontos turísticos favoritos.
mas tudo isso fica ainda mais interessante para mim quando é uma coleção privada. ao chegar na casa de alguém pela primeira vez e passar pela porta, minha mente se perde e meu corpo vibra. estou procurando seus livros.
oi, tudo bem? como você está? venha, fique à vontade, vamos sentar. quer algo para beber? mas minha cabeça está em outro lugar. como preliminar, quero saber o que você lê quando está só. quero que a minha solidão/solitude encontre um pedacinho da sua.
assim que encontro os seus livros, solto um nossa, quantos livros! para anunciar que passarei alguns minutos bisbilhotando. meus dedos percorrem livro a livro. para mim, tudo isso é uma cena erótica, me delicio com cada movimento. é uma dança, cheia de toques e cheiros. às vezes não resisto e puxo um deles para perto de mim, quero sentir aquele corpo-livro-desconhecido em minhas mãos.
gosto de quando tais livros despertam situações engraçadas. livros que de alguma forma desencadeiam algum sentimento em você, uma vontade de justificá-los, uma excitação, uma memória ou um sorriso. esses são os meus favoritos. aqueles que materializam alguns dos seus desejos e angústias, dos mais supérfluos e simples aos mais obscuros e desconhecidos. quando você suspira ao ver que um determinado livro se jogou em minhas mãos, percebo que tenho ali, dentre os meus dedos, um som da sua carne, um cheiro da sua alma, uma cor da sua sexualidade.
é esta a porta que eu procurava. a janela para a sua alma. e para a minha. quando nos desmanchamos frente a um mesmo objeto, encontramos um link para os nossos Eus. deixamos, por um breve instante, de sermos dois. e então começamos a nos comunicar, mesmo que silenciosamente.
É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser além do retrair-se em si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade por intermédio desses condutos secretos que nos provocam o sentimento da obscenidade. [o erotismo, g. bataille]
como comecei dizendo, para mim os livros aparecem a partir de dois pontos: como janela e como fundamento da alma.
janela, pois, de certa forma, exprime alguns dos nossos desejos e interesses mais solitários, algo que frequentemente consumimos quantos estamos sós ou na busca do Outro — como em grupos de leitura, ou na tentativa de entender/estudar algo, ou até mesmo atrás daquela frase-ou-capa perfeita para o instagram. embora fazemos muitas vezes do livro um trampolim para o Outro, vejo como algo que, de certa forma, diz muito sobre o que carregamos aqui dentro. sobre o que nos emociona ou nos interessa; algum desejo sendo explorado; algo para simplesmente descansar a cabeça ou levá-la para outro lugar; um objeto de estudo sobre si ou sobre o Outro; etc etc etc. consigo facilmente traçar o histórico de quem fui-sou-serei através do histórico do que li-leio-lerei.
e nisso chego ao ponto de que, ao mesmo tempo, os livros não são uma simples janela. são também alguns dos fundamentos pelos quais nos construímos e nos destruímos como sujeitos. a cada leitura, uma nova pessoa. a cada nova pessoa, a possibilidade de fazer uma nova leitura — seja de si, do mundo, ou até mesmo do livro que acabou ler, que já não é mais o mesmo. somos esse fluxo e refluxo constante de transformação. avanços e recuos. construções e destruições. por mais que frequentemente lutemos contra o novo, estamos sempre virando as páginas.
sem dúvida que são vários os caminhos para a intimidade e comunicação com o outro, assim como são várias as janelas e fundamentos da alma. mas nessa carta resolvi compartilhar superficialmente um dos meus favoritos para te propor um jogo.
antes, gostaria de fazer um pedido: na próxima vez que eu for na sua casa, que tal sentarmos e conversarmos sobre as leituras que mais mexeram com você?
e o jogo é o seguinte: compartilho contigo a lista das minhas últimas dez leituras e espero ouvir o que você tem lido. o que elas dizem sobre nós? em quais pontos nos tocamos em relação aos nossos desejos e angústias? o que tem feito você ler o que lê?
minhas últimas leituras foram:
manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual, paul b. preciado (atual)
neuromancer, william gibson (atual)
um apartamento em urano: crônicas da travessia, paul b. preciado
problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, butler
espero receber a sua listinha e ouvir o que te excitou e incomodou em cada um. vamos nos olhar um através da janela do outro? espero que, através desse olhar, possamos nos encontrar-e-nos-perder um pouco mais.
um abraço,
aron.
Irei “stalkear” esta parte de sua estante, aqui recém listada. Porém, fiz minhas observações e pude perceber seu apreço pelo “Preciado”. No meu caso a mais recente descoberta literária tem sido a noviça premiada Aline Bei, que com O Peso do Pássaro Morto me fez nova de novo. E estou em seu segundo exemplar, Coreografia do Adeus. Deixo aqui este registro, feliz pela troca realizada e certa de que nossas almas literárias se tocaram. Gratidão ☺️
Que texto lindo, me emocionei. Eu chego na casa de alguém e já vou direto olhar a estante de livros, por menor que seja, às vezes. Para mim, diz tanto, tanto das pessoas. Me perco nelas.
Seu texto me lembrou uma cena que aconteceu esses dias aqui em casa. Um casal de amigo veio jantar com o filho de três anos e, de repente, quando vejo, minha edição da Cosac do livro O Filho de Mil Homens (dos meus preferidos da vida) estava em cima da mesa da cozinha, jogado de qualquer jeito. Meus olhos se arregalaram e eu senti o calor subindo pelo corpo. Bem calma, eu falei: "por que esse livro está aqui?!". Recebei um "ah, o fulano trouxe pra cá" como resposta. Dei um sorriso amarelo e tirei rapidinho o livro dali. Acho que naquele momento, escancararam a janela da minha alma.