carta #11: autobiópsia de leitor
venho te escrever logo após ter sofrido um dos maiores desmoronamentos que a literatura já me proporcionou. falo de água viva, de clarice lispector.
uberlândia, 28 de junho de 2023
olá,
venho te escrever logo após ter sofrido um dos maiores desmoronamentos que a literatura já me proporcionou. falo de água viva, de clarice lispector.
na verdade, escrevo a partir vários buracos acumulados. esse foi apenas a gota d’água. gota que deu vida a uma série de sentimentos que, após ter vivido a partir de clarice dentro daquelas 80 páginas, seria injusto não dar continuidade.
não gosto muito do que acabo de escrever — mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. e respeito muito o que eu me aconteço. minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço.*
muitas pessoas constroem suas autobiografias de leitor.
te apresento um caminho um pouco parecido.
foram muitas as leituras que me desmoronaram, me racharam, me destruíram. algumas até me mataram. hoje falo um pouco delas.
livros que rasgaram quem eu sou. que deram lugar a uma nova pessoa a cada virar de página.
sobre os livros que me mataram, apresento um breve recorte da minha autobiópsia de leitor.
não é confortável o que te escrevo. não faço confidências. antes me metalizo.
escrevo-te porque não me entendo.*
estou destruída. nos últimos meses, foram vários os desmoronamentos que as leituras me causaram. nem sei ao certo o que restou por aqui.
me sinto uma traidora. pois falo agora de personagens, textos e autores ao mesmo tempo que deixo muito para trás. também traio, pois sei que pouco desses processos são traduzíveis à linguagem.
que a maior parte está aqui. é só minha. e só se vive no instante.
terei que morrer de novo para de novo nascer? aceito. … criar de si próprio um ser é muito grave. estou me criando. e andar na escuridão completa a procura de nós mesmos é o que fazemos. dói. mas é dor de parto: nasce uma coisa que é.*
essas várias leituras foram me matando um pouco a cada dia. me transformando em algo novo. são também o substrato do que tenho vindo-a-ser.
vir-a-ser.
foi assim que hegel e sua fenomenologia do espírito começou a me matar, cerca de dois anos atrás. a ideia de um ser que está em constante transformação e que não consegue se aquietar em momento algum me assombrou por meses. e também me encantou muito. ainda hoje esse fantasma me tira horas de sono. mas vir-a-ser o quê? ainda precisei morrer muito para começar a responder essa questão.
sinto muito te informar, mas sou egoísta o suficiente para ter certeza que quando clarice escreveu água viva, ela falava de mim.
sou eu aquela personagem sufocada pela beleza da vida, pelos seus medos, angústias, e paixões. sou eu também aquele desejo de simplesmente ser o instante-já, apagar um pouco de todo o resto. e fazer da escrita, das artes e da vida, um traço com sabor lilás do que alimenta o amanhã.
sinto-me presente em cada parágrafo. lembro de ter vivido toda aquela intensidade narrada. fui aquela personagem ontem. ainda a vivo hoje. e também me recordo bem do amanhã.
pois só quem já saboreou o pólen de um vislumbrar-se sabe qual pode ser o cheiro do novo amanhecer.
antes de tê-lo saboreado, ouvi falar sobre. foi bataille, em a experiência interior, que me trouxe um sofrimento inenarrável de ler e reler cada parágrafo com intenso prazer. a cada novo pensamento, um jogar o livro ao lado e começar a andar pela casa olhando para o nada e pensando em tudo.
experiência interior é para bataille um período extremamente raro, algo inteligível. é marcado por uma intensa angústia e êxtase; medos e desejos; tristezas e felicidades. tudo junto e misturado. algo que foge à razão humana. é um encontrar-se consigo mesmo, encarar o abismo de si e abraçá-lo. deixá-lo tomar conta de si.
quando se encara o abismo por tempo suficiente, ele te olha de volta.
é um instante-intenso onde corpo-mente dão vida ao vazio, às contradições, ao nada que tudo pode ser. é tornar-se espelho. espelho duplo e que reflete a si mesmo infinitamente. uma linda dança da mais intensa das destruições. uma implosão do eu ao embebedar-se de si, do desconhecido e do irracional de si.
é morrer. e saber que está morrendo.
é temer a morte. temer o novo. querer fugir do abismo.
mas saber que a queda já começou.
uma experiência interior de quase morte vida.
não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. eu não: quero é uma verdade inventada.*
ler a experiência interior me transformou. eu também já senti a brisa deste abismo.
mas senti medo. preferi guardar tudo na minha garganta. repetidamente, a brisa volta a mexer com os meus cabelos. frequentemente, penso em me jogar. dar vida ao desconhecido, à escuridão, ao novo eu. mas, ao mesmo tempo, pareço estar o tempo todo lutando para não sair do lugar. pois tenho medo. esta é a minha guerra-civil.
muitas vezes, quem vence é o medo. a insegurança. o desejo de me encaixar nas expectativas dos outros. e nisso me apago.
quase sempre, quem fala com você não sou eu. quem você vê passando pelas ruas não sou eu. quem te conta os segredos não sou eu. mas ele, o impostor. aquele que vive por mim, tentando manter as boas aparências que de boas não têm nada.
mas também quero viver. quero dançar e sorrir. quero ser sincera com você, retirar essa máscara que cobre o meu rosto e que não me serve mais.
vou te fazer uma confissão: estou um pouco assustada. é que não sei aonde me levará esta minha liberdade.*
e não se apegue tanto aos meus dramas. o instante é de intensidade. o fluxo é de leveza.
bataille também fala do amor: do momento em que o abismo que separa dois seres se tocam. da dança erótica que essa destruição traz.
há poucos meses me apaixonei por diadorim, de grande sertão: veredas. diadorim é minha neblina.
considero diadorim como um dos personagens mais belos e injustiçados da nossa literatura. criei uma leitura minha de quem ele é, e já arrumei diversas discussões para defendê-lo. pois o amo. sei que não estou errada. e não, não estou aberta a discussões.
ele, infelizmente, lutou contra o próprio amor. sofreu por isso. deixou de viver parte de quem era pelas violências da sociedade.
ver essas injustiças que fizeram parte da sua vida também me matam um pouco, diadorim. ver em ti um pouco de mim me faz sorrir. e é por isso que passei a te amar. sinto que nossos abismos se tocaram.
e antes de amar diadorim, deparei-me com uma barata. eu a encarava. ela me encarava de volta. passamos semanas nessa dança infernal e apaixonante. foi em a paixão segundo g.h. que percebi ser a minha própria barata.
nojo, repulsa, medo, vergonha. eu estava lá, no armário, representando tudo isso.
uma vida inteira aprendendo a sentir repulsa de uma barata.
como poderia sentir algo diferente?
ao mesmo tempo, esperava por um beijo, um carinho, um toque.
e esse encontro foi o início de meu desmoronamento. tentei te esquecer, te deixar lá guardada.
tentei te ignorar e viver a minha vida. me prender a rotina e desviar o olhar.
não sabia o que fazer com você. tampouco comigo.
mas sou fraca. e sou feliz por isso.
diariamente, como que num ritual, te observo. te sorrio.
e, às vezes, te beijo.
não te escrevo para comunicar nada. não estamos conversando. não tenho lógica alguma aqui senão o simples seguir dos meus pensamentos. somos apenas eu, caneta e papel. não gosto do resultado. vejo estar pulando de um fluxo de pensamento ao outro. mas é um texto sincero. é o que quero te falar.
o melhor ainda não foi escrito. o melhor está nas entrelinhas.*
há poucas semanas, li a estrangeria. em um dos capítulos sobre a mãe, ela conta sobre como sua mãe assistia tudo na tv assumindo que era tudo verdade.
um filme de terror se transformava em um documentário sobre um terrível assassinato. um romance sobre a história de pessoas que realmente se apaixonaram. a partir do momento em que ela não conseguia mais manter a ilusão de que tudo aquilo era real, seu interesse se esvanecia.
ela era apaixonada pelo real.
mas o que realmente me encantou foi o seu poder e sensibilidade de dar vida a tantas personagens, tantas histórias, de sentir e viver tanta ficção em sua vida.
há muito tempo eu também recuso essas divisões binárias de ficção X realidade, ciência X natureza, homem X mulher, corpo X mente.
e hoje me deixo viver nesse mundo ficcional que eu mesma criei para assim poder me apaixonar por diadorim e conseguir defendê-lo. para assim poder sentir a forma linda pela qual clarice me narrou. para deixar que a barata viva em meu armário, onde eu possa diariamente lutar contra/pelo desejo de beijá-la.
sou também uma ficção.
uma ciborgue.
sou ciborgue desde que conheci o manifesto ciborgue, de donna haraway, no início deste ano.
é um texto político que visa destruir uma gama de sistemas-verdades, dentre eles a própria dualidade realidade X ficção. ela anuncia sobre como o sistema sexo-gênero, embora frequentemente tido como um objeto natural e biológico, é uma ficção que se esconde atrás de uma suposta verdade com o objetivo de sustentar um complexo emaranhado de poderes.
como resposta, ela propõe a criação de múltiplas novas ficções. novas mitologias originárias que sejam capaz de permitir novas formas de existir. a forma ciborgue. esse foi apenas o seu primeiro passo. uma direção. para que cada uma de nós pudéssemos construir e narrar as nossas próprias ficções.
e sou desde então mais uma ciborgue. tenho escrito minhas ficções e destruído todas as minhas verdades. encontro a mim mesma onde a neblina prevalece. busco encarnar e dar movimento para as minhas maiores contradições.
uma ciborgue de corpo-mente mutante. um novo enredo ficcional para chamar de eu. e como diria meu querido amigo paul b. preciado, sou o monstro que vos fala.
sim, clarice, realmente tenho muito medo de morrer. pois já senti a brisa do meu abismo. e uma vez que a conhecemos, nada mais basta a não ser a queda.
essa é a beleza do instante-imenso e do eterno retorno, daquele presente que constrói o passado para destruir o futuro. um constante vir-a-ser, desvanecer. a contradição encarnada. (em minhas ficções, hegel e nietzsche andam de mãos dadas)
clarice, obrigada. pouco me resta a dizer, você já escreveu tudo.
bataille, foi com você que aprendi a ter medo e o desejo pelo medo. a querer cair.
diadorim, que bom que nossos abismos se tocaram.
haraway, minha mitologia está sendo escrita e destruída a cada amanhecer.
e preciado, meu querido. eu sou o monstro que te escuta.
beijos,
aron.
* todos os trechos citados são de água viva.
Que texto mais lindo. Deixou Clarice e sua água viva ainda mais potente.