carta #1: estou de mudança, mas dessa vez não é de casa/trabalho.
quando foi a última vez que você se mudou? estou prestes a iniciar mais uma mudança, mas dessa vez não é de casa, muito menos de trabalho. acho que é algo bem maior-e-menor…
uberlândia, 19 de agosto de 2022.
nossa, quanto tempo! já faz quase-literalmente uma vida que não nos falamos. muita coisa mudou por aqui e então resolvi te escrever uma carta, reviver nossa longa amizade.
estou prestes a iniciar mais uma mudança, mas dessa vez não é de casa, muito menos de trabalho. acho que é algo bem maior-e-menor. quando foi a última vez que você se mudou? como foi esse processo e que tipo de mudança? vim para uberlândia há quase dois anos, já passei por dois apartamentos, e adoraria me mudar mais uma vez! mas… posso te dizer que odeio mudanças. passei a minha vida inteira tentando evitá-las. mesmo não estando tão bem aqui, prefiro ficar só para evitar lidar com esse processo tão chato. desde buscar um novo lar, os custos envolvidos, as burocracias, faxinas, … são tantas coisas que tudo isso me deixa sem bateria. mas, como já disse, estou aqui para falar de outras mudanças, daquelas que chegam sem aviso prévio.
no último ano, uma série de pequenas-e-grandes-reviravoltas aconteceram por aqui. infelizmente, talvez a gente já não se conheça tão bem quanto antes. diria que estou num processo de abandonar tudo. na verdade, já abandonei quase tudo. e isso tem me deixado mais feliz. sabe daquele momento em que é preciso fazer as caixas e caminhar-ou-correr para uma nova casa? todo aquele trabalho-sem-fim de empacotar, limpar, organizar, dar tchau-adeus, e muitas outras coisas para no fim ter um novo lugar para chamar de casa?
diria que estou nesse processo há pouco mais de um ano, mas de uma forma um pouco diferente. o que acontece é que eu passei a minha vida toda empacotando e fazendo as caixas, guardando muitas coisas que pensei jamais precisar e só recentemente notei que estavam lá, me esperando. não que eu estivesse empacotando para viagem ou planejando uma mudança futura. ou muito menos que eu possa te dizer agora para onde estou indo. estava apenas tentando esconder as bagunças em várias caixinhas para, externamente, aparecer como uma embalagem mais bonitinha, limpa, reciclável e gourmet.
hoje vejo que minhas caixas-rótulos-identidades têm várias cores, tamanhos e sabores. tem a mais liberal e até a mais conservadora; uma bem sociável, outra do só-quero-ficar-só. uma variedade de coisinhas, todas aqui comigo, e só agora parei para ouvi-las. brevemente, consigo descrevê-las em três grupos — eu e minha mania de tentar organizar tudo.
na primeira, temos as que são usadas como caixa-vestimenta-identidade — como se fosse um jeans, ou uma camiseta, ou uma profissão, ou às vezes até um relacionamento — para que você possa me olhar externamente e saber de cara quais modelos-versões-flavors eu sou.
em um segundo grupo, podemos ver as que funcionam com uma caixa-roupa-íntima-interesses, são as coisas um pouco mais internas que uso para me dar conforto e me localizar no mundo: se gosto do sabor do vermelho, então posso procurar mais vermelhos pelos céus da cidade.
por fim, tem as que me levaram a escrever essa carta. são as caixas que disse ter montado ao longo da vida, as esquecidas e relegadas, mas que só agora puderam ser abertas. são aquelas que não podem ser usadas para apresentar uma identidade ou um interesse, um ponto fixo no horizonte, um rótulo-identidade para dizer sou X e gosto de XX. são as caixas-que-se-desmancham-no-ar, a negação da negação de todas as demais. não têm nome, cor, formato ou tamanho. nem isso nem aquilo. e, quase que como o desejo que só quer mais desejo, são caixas-não-caixas que só querem mais não-caixas. querem fluir. desmanchar. desvanecer. são as minhas não-caixas cheias de potentia gaudendi. (segue um trecho do livro testo junkie, de paul b. preciado)
Defino a noção de potentia gaudendi, ou “força orgásmica", como a potência (presencial ou virtual) de excitação (total) de um corpo. Esta potência é uma capacidade indeterminada; não tem gênero, não é nem feminina nem masculina, nem humana nem animal, nem viva nem inanimada […] A força orgásmica é a soma da potencialidade de excitação inerente a cada molécula material. A força orgásmica não busca nenhuma resolução imediata, aspira apenas à própria extensão no espaço e no tempo, a tudo e a todos, em todo lugar e a todo momento. É uma força de transformação do mundo em prazer — "prazer com”.
e então, você já parou para ouvir a sua potentia gaudendi? já deixou esta força guiar alguma de suas mudanças? posso te dizer que passei 25 anos sem notá-las, embora a publicidade farmacopornográfica conheça muito bem o desejo que só quer mais desejo e se delicie com cada gemido de potentia gaudendi transformado em uma transação monetária.
percebo que dessa vez, as caixas não foram abertas para se concluir uma mudança e começar a construção de um novo lar, mas apenas como um primeiro passo-e-salto para o que está por vir. e talvez seja por aqui, com a nossa troca de cartas, que alguns registros dessa travessia possa viver.
sem saber que estava prestes a dar um salto no escuro, abro, como já fez uma vez Pandora e exatamente pelos mesmos motivos, a minha caixa de pandora-aron. não em busca de uma esperança escondida no fundo do baú, mas de todas as desgraças que ela pode me trazer.
espero ansiosamente pela sua resposta para ouvir o que tudo isso significa para você, seja em uma carta-digital ou carta-física.
um abraço apertado,
aron.
ps: coloquei uma foto no envelope, espero que goste. se quiser me mandar outra de volta, vou adorar.